As imagens míticas são representações espontâneas provenientes da imaginação do homem, que descrevem em linguagem poética as experiências fundamentais do ser humano. Os deuses gregos, mesmo que amorais, trazes paradoxalmente profundas verdades morais e descrevem muitos ângulos e nuanças que operam na psique humana.
São símbolos da Natureza Humana, nossa própria natureza com sua profunda ambivalência de corpo e alma e seus impulsos mutuamente contraditórios com relação à autorrealização.
A Psicoterapia Junguiana busca em cada mito reconhecer este nuance da experiência humana e oferecer ao analisando uma compreensão maior de algo que esteja vivendo em dado momento de sua vida.
Dioniso – Nascido duas vezes

Diôniso era filho de Zeus, rei dos deuses, e de Semele, princesa de Tebas, porém mortal. A esposa imortal de Zeus, Hera, enfurecida com a infidelidade do marido, disfarçou-se de ama-seca e foi ter com Semele, ainda grávida, e persuadiu-a a pedir que o marido se mostrasse em todo o seu esplendor e glória divina. Zeus, que prometera a Semele jamais negar-lhe coisa alguma, assim o fez para satisfazê-la, e Semele, não suportando a visão do deus, tombou fulminada. Zeus apressou-se a retirar a criança que ela gerava e ordenou que Hermes a costurasse em sua própria coxa. Assim, ao terminar a gestação, Diôniso nasceu, vivo e perfeito.
Contudo, Hera, não satisfeita, continuou a perseguir a estranha criança de chifres e ordenou aos Titãs, deuses terrenos, que matassem o menino, fazendo-o em pedaços. Mas novamente Zeus interferiu e conseguiu resgatar o coração da criança, que ainda batia. Colocou-o para cozinhar junto com sementes do romã, transformando tudo numa poção mágica, a qual deu de beber para Perséfone, que fora raptada por Hades, deus das Trevas e da Escuridão, tornando-se sua esposa.
Perséfone engravidou e novamente deu à luz Diôniso, o renascido das Trevas, deus da Luz e do Êxtase. Convocado por seu pai Zeus para viver na terra junto com os homens e compartilhar com eles as alegrias e sofrimento dos mortais, Diôniso foi atingido pela loucura de Hera, indo perambular pelo mundo ao lado dos sátiros selvagens, dos loucos e dos animais.
Deu à humanidade o vinho e suas bênçãos, e concedeu a redenção espiritual a todos os que decidiam abandonar e renunciar à riqueza e ao poder material. Por fim, seu pai celestial, Zeus, permitiu-lhe retornar ao Olimpo, onde tomou seu lugar à direita do rei dos deuses.
Interpretação dentro da abordagem Junguiana
No nível psicológico, Dioniso representa a imagem do impulso misterioso dentro de cada um de nós, aquilo que nos impele para o desconhecido. Hera, por outro lado, representa os valores estruturantes que norteiam as relações humanas em diversos âmbitos de uma sociedade. Ela é a deusa do matrimônio e da família.
De certa forma, Dioniso é uma imagem antagônica ao princípio representado por Hera. Quando vivemos uma vida muito bem estruturada e muito adaptada aos valores morais de uma sociedade, passamos a negligenciar muitos impulsos que nascem de nossa natureza instintual.
Muito provavelmente esses impulsos são uma ameaça aos nossos valores e, tal qual Hera, estamos sujeitos a “matar” o mais breve possível esses desejos incompatíveis com nossa imagem perante o meio em que vivemos. Na antiga Grécia, durante muitos anos, Dioniso era considerado um deus assim como os demais deuses do Olimpo.
Entretanto, seus cultos, que buscavam levar as pessoas a um estado de êxtase e transe, regados a vinho e dança, trouxeram muito desconforto a muitas famílias, até o ponto de serem proibidos e Dioniso passou a ser considerado um deus menor.
Possivelmente, se nos entregarmos absolutamente a esses desejos e instintos, sem qualquer controle, estaremos sujeitos a despedaçar nossa estrutura de personalidade e conheceremos a loucura de Dioniso. Pessoas que, de alguma forma, não possuem estrutura psíquica resiliente o suficiente para lidar com essas forças telúricas, acabam sendo tragadas pelo inconsciente e precisarão de um longo processo de reestruturação para poderem conviver harmonicamente com uma sociedade de regras e valores.
Por outro lado, essas forças instintuais nos trazem o sentimento do pulsar da vida, bem como a criatividade e espontaneidade, tão necessárias ao nosso sentimento de alegria. Enchem nosso corpo de energia e vivacidade e nos tornam mais belos e sensuais. Perséfone, que é filha de Demeter, quando chegou ao Hades, não quis voltar, pois sua mãe a mantinha em um estado virginal e infantil, ao passo que Hades lhe trouxe o conhecimento de suas profundezas e de sua natureza feminina.
Ao dar a luz a Dioniso, entregou-lhe os poderes do submundo. Aqueles que sabem penetrar em seu interior e retornar com consciência se tornam grandes seres humanos, com um profundo entendimento da natureza humana.
Mais uma vez volto a Hera e vejo que pessoas que carregam em si essa força mostram ao coletivo o que geralmente é reprimido em função de uma vida de afazeres e responsabilidades, de uma vida voltada a cumprir deveres junto à família, trabalho, religião, entre outros.
As pessoas que vivem excessivamente em tal estado de prisão moral, veem nos dançarinos da vida aquilo que há muito tempo sepultaram em seu inconsciente. Isso é sentido geralmente com tal desconforto que estarão sujeitos a vestir o arquétipo de Hera e buscarão “matar” a alegria e espontaneidade do filho amado de Zeus.
Nós podemos aprender a equilibrar Hera e Dioniso, afinal, sempre que um deus é negligenciado, em algum momento ele nos castigará. Hera é extremamente necessária para uma convivência equilibrada em sociedade. Dioniso, por outro lado, liberta pela dança, pela alegria de viver, pela libertação do aprisionamento material, por se aprender a ouvir e honrar as forças telúricas que vibram dentro de cada um de nós.